Em um mundo de inversões, onde tudo se transforma em seu contrário e assim sucessivamente, é necessário rever a cada minuto o sentido que as coisas adquirem, quais inversões estão sendo realizadas e por quem. Ou talvez fosse melhor dizer: em um tempo de inversões, um tempo em que se apagou a própria idéia de tempo para se instaurar o pós-tudo da pós-modernidade pós-rancor, é necessário, a cada minuto, olhar os sentidos da dinâmica social e suas inversões constantes. 

1. vitrola | contraponto
Quando o tal do gigante acordou, o sentido de uma força que tomava conta das ruas se inverteu. Ficou forte, daí, o grito positivista do nacionalismo. O hino nacional tornou inaudível os gritos anti-capitalistas, sufocou qualquer possibilidade de crítica radical. As pautas se tornaram apelos cívicos, já não questionavam as condições materiais violentas do capitalismo brasileiro em seu momento de ápice e colapso, mas buscavam “endireitar” os rumos da pátria[1].

A operação de inverter a polaridade de uma vitrola, fazendo com que o disco de hinos nacionais toque ao contrário, inverte – de cara – todo o discurso positivista, recusa seu conteúdo e o torna inaudível.  Mas é pela desconfiguração sonora que se explicita qual é o movimento do nacional em relação ao indivíduo – se escutado na forma positiva, a agulha caminha para o centro (para uma centralização?), para um ápice determinado, alcançado através da progressão do movimento do aparelho. Já em seu espelhamento negativo, a agulha caminha no sentido de sua própria expulsão da unidade do disco: em movimentos sutis ela está programada para sua própria falência, seu colapso, já que despenca do equipamento quando a musica acaba. Estes movimentos não se excluem, mas se completam.
O positivismo ufanista expresso no hino nacional brasileiro foi a objetivação poética e heróica do momento de formação dos Estados nacionais, que por sua vez se constituiram como condição para a formação simultânea e inseparável do moderno sistema produtor de mercadorias. Assim, o capitalismo, atualmente em crise mundial, reproduzido ampliada e ficticiamente pelos mecanismos financeiros, pede a retomada histérica da ideia heróica de nação, mesmo que esta também esteja em colapso e se apresente como um invólucro meramente formal. – E lá vão eles, de verde e amarelo, cantando sua raiva e seu otimismo opressor no mesmo tom.
Será que é justamente esta crise mundial (que põe o capitalismo pra funcionar a pleno vapor, na mesma velocidade em que o desmorona) que demonstra de forma tão violenta que o tempo não anda somente pra frente? Se, na visão positivista, o tempo somente pode ser o da evolução linear rumo a um ponto culminante pré-determinado – a realização do progresso –,  então entra em crise também esta própria noção de tempo, na medida em que começam a aparecer as rachaduras na imagem do Brasil-decolante: o país credor, dos grandes eventos, está agora em conflito e em refluxo.
E aí o contraponto da vitrola agora não é somente inversão do conteúdo positivista, mas de sua própria noção temporal. Revertendo o caminho que a agulha percorre, se ataca tanto uma temporalidade linear evolutiva própria do positivismo clássico – que levaria da “glória do passado” à “paz do futuro” – quanto um apagamento do tempo das lutas sociais realizado pelo positivismo pós-moderno – para o qual já não há possibilidade de ruptura histórica, restando somente uma duração abstrata, quase pós-histórica. (Por isso é bom que se inverta junto aos coxinhas do hino nacional, a tal da “geração pós-rancor”[2]). Um fim da história em que o dinamismo de uma sociedade só pode ser aquele da criatividade na reformulação das estratégias de vendas e na reinvenção de novas formas-mercadorias possíveis e compatíveis com a era digital.
Não se trata de apologia ao passado, ou qualquer modo de saudosismo, portanto, o fato de que se apresenta um instrumento analógico (a vitrola), passível de intervenção direta – de inversão da polarização. Trata-se sim da crítica a uma apologia generalizada das novidades tecnológicas que aparecem no mercado e na vida cotidiana como extensões naturais do fazer e do corpo humano. Tampouco os elementos temporalmente datados que aludem ao positivismo – a cartilha, os próprios hinos – afirmam uma estética “vintage” ou retrô. Na medida em que são precisos e não arbitrários, estes elementos apontam para temporalidades determinadas, para marcos e pontos de inflexão. Nos lembram, portanto, de uma temporalidade que está para ser construída, de categorias que não existiram sempre e não serão, por isso, eternas.
Marilia Barreira Furman
Julho/2013



[1] Isso em um nível mais midiático, onde estava sendo disputado o sentido das manifestações. Talvez em um outro nível se possa dizer que as lutas sociais saíram fortalecidas e aprofundaram sua capacidade crítica.
[2] O positivismo pós-moderno se apresenta em inúmeras cores e bandeiras: ele é verde-amarelo, ele é rosa choque, é ecológico, artístico, tecnológico e cultural. E ele é, principalmente, anti-rancor, pois aparentemente não haveria mais motivo para isso.  Para a geração pós-rancor: “mesmo as manifestações são transformadas em happenings e oportunidades de bons negócios com patrocinadores interessados em vender uma imagem dinâmica e "progressista". As "antigas" e "rancorosas" reivindicações dos tra­balhadores e jovens pelo acesso real e material ao mundo da cultura e das artes são açambarcadas, administradas e domesticadas por um vasto em­preendimento, que envolve fundos públicos, pa­trocínios de corporações e de empresas privadas e "gestores culturais" que se encarregam de encon­trar os artistas e promover os eventos. Finalmente, a técnica da "gestão cultural" é transportada para o ativismo militante e justificada com um discur­so "pós-rancoroso", o mais adequado ao mundo das reivindicações "pós-materiais". O Fora do Eixo e congêneres constituem a expressão mista do movimen­to "cansei". José ARBEX Jr., “Lulismo Fora do Eixo”, in Controvérsia, 12.08.2011, online:, acesso em: 06.05.2014.